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COMO MORREM OS POBRES


Now, N° 6, novembro de 1946


No ano de 1929, passei várias semanas no Hôpital X, no 15 ème Arrondissement de Paris.


1° As recepcionistas me submeteram ao interrogatório usual e fiquei uns vinte minutos respondendo perguntas, antes de me deixarem entrar. Se você já teve de preencher formulário num país latino saberá a que tipo de pergunta me refiro.

Eu era incapaz de converter Reaumur em Fahrenheit, mas sei que minha temperatura estava em torno de 103 [39,5 o C] e que no final da entrevista eu tinha dificuldades para ficar em pé. Às minhas costas, um pequeno grupo de pacientes resignados, carregando trouxas feitas de lenços coloridos, esperava a vez de ser interrogado. Depois do interrogatório, veio o banho — ao que parece, uma rotina compulsória para todos os que chegam, à prisão ou ao albergue. Levaram minhas roupas e depois que fiquei sentado tremendo por alguns minutos em dez centímetros de água morna, me deram um camisão de linho e um roupão azul curto de flanela — sem chinelos, pois disseram que não tinham um que coubesse em mim — e me levaram para fora. Isso aconteceu numa noite de fevereiro e eu estava com pneumonia.


2° A enfermaria para onde íamos ficava a quase duzentos metros e dava impressão de que para chegar lá era preciso atravessar o terreno do hospital. Alguém tropeçou diante de mim com uma lanterna. O caminho de cascalho estava congelado e o vento açoitava o camisão em torno dos meus tornozelos nus. Quando entramos na enfermaria, tive um sentimento estranho de familiaridade cuja origem só consegui descobrir tarde da noite. Era um quarto longo, um tanto baixo e mal iluminado, cheio de vozes murmurantes e com três fileiras de camas surpreendentemente próximas umas das outras.


Havia um cheiro fétido, fecal, mas adocicado.


Ao deitar-me, vi na cama quase oposta à minha um homenzinho de ombros redondos e cabelos ruivos sentado seminu, enquanto o médico e um estudante realizavam uma estranha operação nele. Primeiro, o médico tirou de sua pasta preta uma dezena de copos pequenos, parecidos com os de vinho, depois o estudante acendeu um fósforo dentro de cada copo para exaurir o ar, então o copo foi aplicado nas costas ou no peito do homem e o vácuo provocou uma enorme bolha amarela.


Somente depois de alguns instantes foi que me dei conta do que estavam fazendo.


Era uma sangria por ventosa, um tratamento sobre o qual se pode ler em manuais antigos de medicina, mas que até então eu tinha a vaga impressão de que era uma daquelas coisas que fazem com cavalos. O ar frio do lado de fora havia provavelmente baixado minha temperatura, e observei aquele remédio bárbaro com distanciamento e até certo grau de diversão. No momento seguinte, porém, o médico e o estudante vieram até minha cama, me ergueram e sem dizer palavra começaram a aplicar o mesmo conjunto de copos, que não haviam sido de forma alguma esterilizados. Alguns débeis protestos que pronunciei não obtiveram nenhuma resposta, como se eu fosse um animal.


Eu estava muito impressionado com a maneira impessoal como os dois homens me trataram. Eu nunca estivera numa enfermaria pública de um hospital e era minha primeira experiência com médicos que lidavam com a gente sem falar com a gente, ou, num sentido humano, sem reparar na gente. No meu caso, puseram somente seis copos, mas depois de fazê-lo escarificaram as bolhas e aplicaram os copos de novo. Cada copo drenou então cerca de meia colher de sobremesa de sangue escuro. Depois que me deitei novamente, humilhado, nauseado e assustado com o que eles me fizeram, refleti que agora me deixariam em paz. Mas não, nem sinal disso. Havia outro tratamento a caminho, o cataplasma de mostarda, provavelmente uma coisa de rotina, como o banho quente. Duas enfermeiras desleixadas já estavam com o cataplasma pronto e o prenderam ao redor de meu peito, como uma camisa de força, enquanto alguns homens que passeavam pela enfermaria de camisa e calça começaram a se reunir em torno da minha cama, com sorrisos meio simpáticos. Fiquei sabendo depois que observar a aplicação de um cataplasma de mostarda era um passatempo predileto na enfermaria.


Essas coisas são aplicadas normalmente por um quarto de hora e são por certo divertidas se você não for o paciente. Nos primeiros cinco minutos, a dor é forte, mas a gente acredita que pode suportar. Nos cinco minutos seguintes, essa crença se evapora, mas o cataplasma está afivelado nas suas costas e você não consegue tirá-lo. Esse é o período que os espectadores mais apreciam.


Notei que nos últimos cinco minutos sobrevém uma espécie de dormência. Depois que retiraram o cataplasma, enfiaram sob minha cabeça um travesseiro à prova d’água cheio de gelo e me deixaram em paz. Não dormi e, tanto quanto sei, essa foi a única noite de minha vida — refiro-me à única noite passada numa cama — em que não dormi nada, nem mesmo um minuto. Durante minha primeira hora no Hôpital X, eu sofrera toda uma série de tratamentos diferentes e contraditórios, mas isso era enganador, pois em geral você recebe muito pouco tratamento, seja bom ou ruim, exceto se estiver doente de um jeito interessante e instrutivo.


Às cinco da manhã, as enfermeiras chegaram, acordaram os pacientes e tiraram suas temperaturas, mas não os lavaram. Se você estivesse bem o bastante, podia lavar-se sozinho, senão dependia da bondade de algum paciente capaz de caminhar. Eram também os pacientes que, em geral, levavam as garrafas de urina e a comadre, apelidada de la casserole. Às oito chegava o desjejum, chamado de la soupe, à maneira do Exército.


Era sopa também, uma sopa rala de legumes com pedaços pegajosos de pão flutuando nela. Mais tarde, o médico alto, solene, de barba preta fez sua ronda, com um interno e uma tropa de estudantes em seus calcanhares, mas havia em torno de sessenta de nós na enfermaria e era evidente que ele tinha outras alas para visitar também. Havia muitas camas pelas quais ele passava dia após dia, às vezes seguido de gritos de súplica. Por outro lado, se você tivesse alguma doença com a qual os alunos quisessem se familiarizar, então ganhava muita atenção. De minha parte, eu que estava com um excepcionalmente belo espécime de chocalho bronquial, tinha às vezes até uma dúzia de estudantes fazendo fila para escutar meu peito.


Era uma sensação muito esquisita — esquisita porque ao lado do interesse deles em aprender a profissão havia uma aparente falta de qualquer percepção de que os pacientes eram seres humanos. É estranho contar isso, mas às vezes, quando dava um passo à frente para assumir sua vez de manipulá-lo, o estudante estava trêmulo de excitação, como um menino que consegue pôr as mãos em alguma máquina cara. E então, ouvido após ouvido — orelhas de rapazes, de moças, de negros — pressionado contra suas costas, revezamentos de dedos batendo solenes, mas desajeitadamente, e de nenhum deles a gente obtinha uma palavra de conversa ou um olhar direto no rosto. Na qualidade de paciente não pagante, no uniforme de camisão, a gente era sobretudo um espécime, uma coisa da qual não me ressentia, mas com a qual nunca me acostumei muito bem. Depois de alguns dias, melhorei o suficiente para sentar e estudar os pacientes à minha volta.


O quarto abafado, com suas camas estreitas tão próximas umas das outras que se poderia tocar facilmente a mão do vizinho, tinha toda espécie de doença, exceto, suponho, casos de infecção aguda. Meu vizinho da direita era um sapateiro baixo e ruivo, com uma perna mais curta que a outra, que costumava anunciar a morte de outros pacientes (isso aconteceu algumas vezes, e meu vizinho era sempre o primeiro a saber) assobiando para mim, exclamando “Número 43!” (ou o número que fosse) e estendendo os braços acima da cabeça.


O sujeito não tinha nada muito grave, mas na maioria das outras camas dentro do meu ângulo de visão estava em andamento alguma tragédia sórdida ou de puro horror. Na cama ao pé da minha jazia, até a morte (não o vi morrer — mudaram-no para outra cama), um homenzinho encarquilhado que sofria de não sei qual doença, mas algo que deixava todo o seu corpo tão sensível que qualquer movimento de lado, às vezes até o peso das roupas de cama, o fazia gritar de dor. Seu pior sofrimento era quando urinava, o que fazia com a maior dificuldade. Uma enfermeira trazia a garrafa e depois, por um bom tempo, ficava ao lado de sua cama, assobiando, como dizem que os cavalariços fazem com os cavalos, até que finalmente, com um grito agudo de “Je pisse!”, ele começava a urinar. Na cama ao lado da dele, o homem ruivo que eu vira com as ventosas costumava tossir um muco com filetes de sangue a toda hora. Meu vizinho da esquerda era um jovem alto, de aparência flácida, no qual inseriam periodicamente um tubo nas costas e uma quantidade espantosa de líquido espumoso era retirada de algum lugar de seu corpo. Na cama seguinte, um veterano da guerra de 1870 estava morrendo; era um velho bonito com uma pequena barba embaixo do queixo, e em torno de sua cama, em todas as horas permitidas de visita, sentavam-se quatro parentes idosas, todas de preto, tal como corvos, obviamente à espera de alguma mísera herança. Na cama oposta à minha no outro corredor estava um velho careca com bigodes descaídos e o rosto e o corpo muito inchados, que sofria de uma moléstia que o fazia urinar de forma quase incessante. Um enorme receptáculo de vidro estava sempre ao lado de sua cama.


Um dia, a esposa e a filha vieram visitá-lo.


Ao vê-las, o rosto inchado do homem se iluminou com um sorriso de surpreendente doçura, e quando a filha, uma bela garota de uns vinte anos, se aproximou da cama, vi que a mão dele se movia lentamente sob as cobertas. Pensei prever o gesto que estava vindo — a moça ajoelhada ao lado da cama, a mão do velho sobre a cabeça dela, numa bênção agonizante. Mas não, ele simplesmente entregou a ela a garrafa de urina que ela logo pegou e esvaziou no receptáculo. Umas doze camas me separavam do Número 57 — acho que era esse seu número —, um caso de cirrose do fígado. Todos os que estavam na enfermaria o conheciam de vista porque ele era, às vezes, o tema de uma palestra médica. Duas tardes por semana, o médico alto e sério dava aula na enfermaria para um grupo de estudantes, e em mais de uma ocasião o velho Número 57 foi levado numa espécie de carrinho para o meio da enfermaria, onde o médico levantava seu camisão, dilatava com os dedos uma enorme protuberância mole na barriga do sujeito — o fígado doente, suponho — e explicava com ar solene que aquilo era uma moléstia atribuível ao alcoolismo, comum nos países bebedores de vinho. Como de costume, não falava com o paciente, nem lhe dava um sorriso, um aceno de cabeça ou qualquer sinal de reconhecimento.


Enquanto falava, muito sério e empertigado, segurava o corpo devastado sob suas mãos, girando-o às vezes para lá e para cá, na mesma atitude de uma mulher que segura um rolo de macarrão. Não que o Número 57 se importasse com esse tipo de coisa. Ele era obviamente um paciente antigo do hospital, objeto periódico de exposição nas palestras, e seu fígado havia muito tempo devia estar marcado para ser preservado num recipiente de algum museu patológico. Com total desinteresse pelo que era dito sobre ele, jazia com seus olhos baços fixados em nada, enquanto o médico o exibia como uma peça de porcelana antiga. Era um homem de uns sessenta anos, espantosamente encolhido. Seu rosto, pálido como papel, havia encolhido até parecer não maior do que o de um boneco.


Certa manhã, meu vizinho sapateiro me acordou com um puxão no travesseiro antes que as enfermeiras chegassem. “Número 57!” — e esticou os braços acima da cabeça. Havia uma luz acesa na enfermaria, suficiente para enxergar. Pude ver o velho Número 57 tombado de lado, com o rosto esticado para fora da cama, na minha direção. Havia morrido durante a noite, ninguém sabia em que momento. Quando as enfermeiras vieram, receberam a notícia de sua morte com indiferença e foram cuidar de suas tarefas. Depois de muito tempo, uma hora ou mais, duas outras enfermeiras entraram lado a lado como soldados, com um grande estardalhaço de tamancos, e amarraram o corpo nos lençóis, mas ele só foi removido mais tarde.


Nesse meio-tempo, com uma luz melhor, eu tinha tempo para dar uma boa olhada no Número 57. Com efeito, deitei-me de lado para olhá-lo. Curiosamente, era o primeiro europeu morto que eu via. Já havia visto homens mortos, mas sempre asiáticos e, em geral, gente que tivera mortes violentas.


Os olhos do Número 57 continuavam abertos, a boca também aberta, seu rosto pequeno contorcido numa expressão de agonia. Porém, o que mais me impressionou foi a brancura de seu rosto. Ele estava pálido antes, mas agora estava pouco mais escuro que os lençóis. Enquanto olhava para aquele rosto minúsculo e retorcido, ocorreu-me que aquele resto repugnante de matéria que esperava para ser levado embora e jogado sobre uma lousa na sala de dissecação era um exemplo de morte “natural”, uma das coisas pelas quais se reza na litania. Eis aí, pensei, o que te espera, daqui a vinte, trinta, quarenta anos; é assim que os sortudos morrem, os que vivem até a velhice. A gente quer viver, é claro; na realidade, só ficamos vivos em virtude do medo da morte, mas penso agora, como pensava então, que é melhor morrer violentamente e não velho demais. As pessoas falam dos horrores da guerra, mas que arma o homem inventou que se aproxime em crueldade de algumas das doenças mais comuns? A morte “natural”, quase por definição, significa alguma coisa lenta, fedorenta e dolorosa. Mesmo assim, faz diferença se você pode alcançá-la em sua casa e não numa instituição pública. Aquele pobre infeliz que acabara de apagar como uma vela não era importante nem para ter alguém velando em seu leito de morte. Era apenas um número, depois um “objeto” para os bisturis dos estudantes. E a publicidade sórdida de morrer num lugar como aquele!


No Hôpital X, as camas ficavam muito próximas umas das outras e não havia biombos. Imagine, por exemplo, morrer como o homenzinho cuja cama estava ao pé da minha, aquele que gritava quando a roupa de cama tocava nele! Ouso dizer que “Je pisse!” foram suas últimas palavras registradas. Talvez o moribundo não se importe com essas coisas — essa seria ao menos a resposta padrão: não obstante, os moribundos são com frequência pessoas com a mente mais ou menos normal até um dia ou dois antes do fim. Nas enfermarias públicas de um hospital veem-se horrores que a gente parece não encontrar entre as pessoas que conseguem morrer em casa, como se certas doenças só atacassem pessoas dos estratos de renda mais baixos.


Mas é fato que em nenhum hospital inglês se encontrariam coisas que vi no Hôpital X.


O caso de gente morrendo como animais, por exemplo, sem ninguém ao lado, ninguém interessado, a morte nem mesmo notada até de manhã, aconteceu mais de uma vez. Isso certamente não se veria na Inglaterra, e ainda menos se veria um cadáver exposto à vista dos outros pacientes. Lembro que certa vez, num hospital de campo na Inglaterra, um homem morreu enquanto estávamos no chá, e embora houvesse apenas seis de nós na enfermaria, as enfermeiras resolveram as coisas com tanta habilidade que o homem morreu e seu corpo foi removido sem que ficássemos sabendo antes do final do chá. Uma coisa que talvez subestimemos na Inglaterra é a vantagem de ter um grande número de enfermeiras bem treinadas e rigidamente disciplinadas. Sem dúvida, as enfermeiras inglesas são bem estúpidas, podem tirar a sorte com folhas de chá, usar distintivos com o pavilhão do Reino Unido e ter fotografias da rainha em seus consolos de lareira, mas ao menos não deixam você sujo e constipado sobre uma cama desfeita por pura preguiça.


As enfermeiras do Hôpital X ainda tinham um quê de sra. Gamp, 3 e mais tarde, nos hospitais militares da Espanha republicana, eu veria enfermeiras quase incapazes de tirar a temperatura. Também não se veria na Inglaterra a sujeira do Hôpital X. Mais tarde, quando eu já estava bem o suficiente para me lavar no banheiro, descobri que lá havia um enorme caixote no qual jogavam os restos de comida e as roupas sujas da enfermaria, e os lambris estavam infestados de grilos.


Depois que obtive minhas roupas de volta e fiquei forte das pernas, fugi do Hôpital X antes de receber alta. Não foi o único hospital de que fugi, mas sua tristeza e pobreza, seu cheiro doentio e, sobretudo, algo de sua atmosfera mental se destacam na minha memória como excepcionais. Eu fora levado para lá porque era o hospital de meu arrondissement, e só fiquei sabendo de sua má reputação depois que estava lá. Um ou dois anos depois, a famosa vigarista madame Hanaud, que ficou doente quando estava detida, foi levada ao Hôpital X, e depois de alguns dias conseguiu enganar seus guardas, tomou um táxi e voltou para a prisão, explicando que estava mais confortável lá.


Não tenho dúvidas de que o Hôpital X não era típico dos hospitais franceses, mesmo naquela época. Mas os pacientes, quase todos trabalhadores, eram surpreendentemente resignados. Alguns deles pareciam achar as condições quase confortáveis, pois ao menos dois eram miseráveis que se fingiam de doentes para ter um abrigo no inverno. As enfermeiras eram coniventes porque eles eram úteis para fazer serviços avulsos. Mas a atitude da maioria era: claro que é um lugar abominável, mas que mais esperar? Não lhes parecia estranho ser acordado às cinco da manhã e depois esperar três horas para tomar uma sopa aguada, ou que as pessoas morressem sem ninguém ao seu lado, ou mesmo que sua chance de obter atenção médica dependesse de captar o olhar do médico quando ele passava.


De acordo com seus costumes, os hospitais eram assim. Se você está gravemente enfermo e se é pobre demais para ser tratado em casa, então deve ir para um hospital e, uma vez lá, deve aguentar os maus-tratos e o desconforto, como no Exército. Mas, acima de tudo, eu estava interessado em descobrir uma crença persistente em velhas histórias que agora quase desapareceram da memória na Inglaterra — histórias, por exemplo, sobre médicos que abrem a gente por pura curiosidade ou pensam que é divertido começar a operar antes que se esteja devidamente “apagado”. Corriam histórias sinistras sobre uma pequena sala de cirurgia que diziam ficar logo depois do banheiro. Dizia-se que saíam gritos horríveis daquela sala. Não vi nada que confirmasse essas histórias e, sem dúvida, eram todas disparates, embora eu tenha efetivamente visto dois estudantes matarem um rapaz de dezesseis anos, ou quase matá-lo (ele parecia estar morrendo quando saí do hospital, mas talvez tenha se recuperado depois) com um experimento nocivo que não teriam tentado com um paciente pagante. Uma crença ainda viva na memória londrina dá conta de que em alguns dos grandes hospitais pacientes eram mortos para serem usados como objeto de dissecação. Não ouvi essa história ser repetida no Hôpital X, mas penso que alguns homens que estavam lá a julgariam plausível, pois era um hospital no qual, não os métodos, talvez, mas alguma coisa da atmosfera do século XIX conseguira sobreviver, e nisso estava seu interesse peculiar.


Nos últimos cinquenta anos, mais ou menos, houve uma grande mudança na relação entre médico e paciente. Se olharmos para quase toda a literatura anterior à segunda metade do século XIX, veremos que o hospital é popularmente considerado parecido com uma prisão, e uma prisão antiquada, do tipo masmorra.


O hospital é um lugar de imundície, tortura e morte, uma espécie de antecâmara do túmulo. Ninguém que não fosse mais ou menos miserável pensaria em entrar num lugar desses para tratamento. E especialmente na primeira parte do século passado, quando a ciência médica se tornou mais ousada que antes, sem ser mais bemsucedida, todo o negócio da medicina era visto com horror e temido pelas pessoas comuns. Acreditava-se que a cirurgia, em particular, não passava de uma forma peculiarmente medonha de sadismo, e a dissecação, possível somente com a ajuda de ladrões de cadáveres, era até confundida com a necromancia. Era possível coletar uma farta literatura de horror do século XIX ligada a médicos e hospitais. Pensem no pobre Jorge III, em sua senilidade, gritando por misericórdia ao ver seu cirurgião chegando para “sangrá-lo até que desmaie”! Pensem na conversa de Bob Sawyer e Benjamin Allen, 4 que sem dúvida não são paródias, ou nos hospitais de campo de A derrocada, de Émile Zola, e Guerra e paz, de Tolstói, ou na descrição chocante de uma amputação em White-jacket, de Melville! Até mesmo os nomes dados aos médicos na ficção inglesa do século XIX — Slasher, Carver, Sawyer, Fillgrave 5 e assim por diante — e o apelido genérico de “serra-ossos” são tão sinistros quanto cômicos.


A tradição contra a cirurgia talvez tenha sua melhor expressão no poema de Tennyson “O hospital infantil”, que é essencialmente um documento pré-clorofórmio, embora, ao que parece, tenha sido escrito somente em 1880. 6 Ademais, há muito o que dizer sobre o panorama que Tennyson registra em seu poema. Se pensarmos em como deveria ser uma operação sem anestesia, o que acontecia de fato, não é difícil suspeitar dos motivos das pessoas que se submetiam a tais coisas. Pois esses horrores sangrentos pelos quais os estudantes esperavam com tanta avidez (“Uma visão magnífica, se Slasher a faz!”) eram reconhecidamente mais ou menos inúteis: o paciente que não morria de choque em geral morria de gangrena, resultado que era dado como certo.


Ainda hoje é possível encontrar médicos cujos motivos são questionáveis. Quem já teve muitas doenças, ou escutou a conversa de estudantes de medicina, saberá do que estou falando. Mas os anestésicos provocaram uma mudança decisiva, assim como os desinfetantes. É provável que em nenhum lugar do mundo se veja o tipo de cena descrita por Axel Munthe em


O livro de San Michele, quando o cirurgião sinistro de cartola e sobrecasaca, com a camisa engomada salpicada de sangue e pus, corta paciente após paciente com a mesma faca e joga os membros amputados numa pilha ao lado da mesa.

Além disso, o seguro de saúde nacional acabou parcialmente com a ideia de que um paciente de classe operária é um miserável que merece pouca consideração. Com este século já bem avançado, era comum nos grandes hospitais que pacientes “livres” tivessem seus dentes extraídos sem anestesia. Eles não pagavam, então por que deveriam tomar anestesia — essa era a atitude. Isso também mudou. Não obstante, cada instituição sempre sofrerá a influência de alguma lembrança remanescente do passado.


O alojamento militar ainda é assombrado pelo fantasma de Kipling e é difícil entrar num asilo de pobres sem lembrar Oliver Twist. Os hospitais começaram como uma espécie de enfermaria temporária para leprosos e tipos semelhantes morrerem, e continuaram a ser lugares em que os estudantes de medicina aprendiam sua arte nos corpos dos pobres. Ainda é possível captar uma leve sugestão de sua história na arquitetura tipicamente sombria. Eu estaria longe de reclamar do tratamento que recebi em qualquer hospital inglês, mas sei que é um instinto saudável que adverte as pessoas a ficar longe deles se possível e, em especial, longe das enfermarias públicas. A despeito de sua posição legal, é inquestionável que você tem muito menos controle sobre seu tratamento, muito menos certeza de que não será objeto de experimentos inúteis quando se trata de um caso de “aceite a disciplina ou caia fora”.


E é uma coisa ótima morrer na própria cama, embora melhor ainda seja morrer de morte violenta. Por maior que seja a gentileza e a eficiência, em toda morte no hospital haverá algum detalhe cruel, sórdido, alguma coisa que talvez seja pequena demais para ser contada, mas que deixa terríveis lembranças dolorosas, causadas pela pressa, a lotação, a impessoalidade de um lugar onde todos os dias morrem pessoas entre estranhos. É provável que o medo de hospitais ainda persista entre os muito pobres, e entre todos nós só há pouco desapareceu. Trata-se de uma mancha escura não muito abaixo da superfície de nossas mentes.


Eu disse antes que quando entrei na enfermaria do Hôpital X estava consciente de uma estranha sensação de familiaridade.


Evidentemente, a cena me fez lembrar os hospitais fedorentos e cheios de dor do século XIX, os quais nunca havia visto, mas de que tinha um conhecimento tradicional. E alguma coisa, talvez o médico vestido de negro com sua pasta preta sebenta, ou quem sabe apenas o cheiro doentio, foi responsável pela estranha artimanha de desenterrar de minha memória o poema “O hospital infantil” de Tennyson, no qual não pensava havia vinte anos. Acontece que, quando eu era criança, ele me foi lido em voz alta por uma enfermeira que talvez exercesse essa profissão desde o tempo em que Tennyson escreveu o poema.


Os horrores e sofrimentos dos hospitais de estilo antigo eram uma lembrança vívida para ela. Nós nos arrepiamos juntos diante do poema, e depois, aparentemente, me esqueci dele.


Até mesmo seu título não me lembraria de nada. Mas o primeiro vislumbre do quarto mal iluminado e cheio de murmúrios, com as camas tão perto umas das outras, despertou o encadeamento de ideias ao qual ele pertencia, e na noite seguinte me vi relembrando toda a história e atmosfera do poema, e até mesmo alguns de seus versos inteiros.


George Orwell .

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Eric Arthur Blair, conhecido pelo pseudónimo George Orwell, foi um escritor, jornalista e ensaísta político inglês, considerado talvez o melhor cronista da cultura inglesa do século XX,[9] Orwell dedicou-se a escrever resenhas, ficção, artigos jornalísticos polémicos, crítica literária e poesia. Ele é mais conhecido pelo romance distópico Nineteen Eighty-Four (1984), escrito em 1949, e pela novela satírica Animal Farm (A Revolução dos Bichos)(1945). Juntas, estas obras venderam mais cópias do que os dois livros mais vendidos de qualquer outro escritor do século XX.


* Obra de conteúdo e domínio público, o conhecimento e a educação devem ser acessíveis e livres a toda e qualquer pessoa.


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