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O ERVATÁRIO QUE VIROU MÉDICO FEITICEIRO


Entre os Apukás, havia um ervateiro que muitos nativos conheciam pelo antropônimo de Rotuod Oinotna, um nativo simples com muitas habilidades relacionadas a ervas, chás e conhecimento da escrita secreta dos médicos feiticeiros. Ele era um ervateiro que ousou ascender na sociedade dos Apukás.


Fiquei curioso para saber qual foi a motivação dele para se tornar um Médico Feiticeiro. Para alcançar essa casta, é necessário possuir muitas dádivas, dedicar tempo ao estudo dos segredos e viver entre os médicos feiticeiros. Além disso, é preciso ser aceito por eles para integrar-se totalmente.


Acredito que tenha sido um grande desafio, uma vez que este nativo era de idade avançada, tinha uma família numerosa e exercia sua profissão como ervateiro. Para tornar-se um Médico Feiticeiro, era necessário conviver com seus mestres por, no mínimo, 240 luas. Após esse período, sendo aprovado no ritual chamado Ralubitsev, ele poderia iniciar sua jornada junto aos Mestres dos Médicos Feiticeiros, participando da comunidade do Anicidem ed Osruc.


Durante o tempo como iniciado na comunidade dos Médicos Feiticeiros, ele teve que abrir mão de muitas coisas, incluindo tempo com a família, sua profissão como ervateiro, e praticar a escrita secreta dos Médicos Feiticeiros, que era o desafio mais significativo.


Dizem que, ao viver nessa comunidade, a pessoa fica hipnotizada pelos livros sagrados, aprende a manusear instrumentos de corte, lunetas capazes de ver o interior do corpo, maquinaria estranha e pratica rezas. Eles decoram nomes estranhos, adquirem conhecimento sobre vida e morte, estudam doenças, aprendem a ressuscitar pessoas e a diagnosticar enfermidades do corpo e da alma.


Conta-se que muitos desses iniciados são possuídos por espíritos adoradores de dádivas, fazendo com que esqueçam o motivo principal de tornarem-se Médicos Feiticeiros, que, segundo alguns nativos, era ajudar as pessoas, salvar vidas e aliviar o sofrimento dos necessitados e moribundos.


É importante ressaltar que muitos desses iniciados perdem sua humanidade, simplicidade e empatia devido ao sofrimento e aos rituais, mas uma pequena parte deles consegue manter atributos essenciais para se tornarem excelentes Médicos Feiticeiros, como empatia, simplicidade, humanidade e sabedoria.


Devemos salientar que não é tarefa fácil tornar-se um Médico Feiticeiro, pois eles são testados até o limite da alma, momento em que são possuídos pelos espíritos das dádivas, de acordo com os anciões.


Segundo relatos, houve uma época em que havia muitos médicos feiticeiros na tribo dos Apukás, e vários locais sagrados chamados Sacinilc ou Siatipsoh curavam os moribundos com poucas dádivas. Nesse tempo, os Médicos Feiticeiros não se sentiam superiores, sendo possuídos pelo espírito da bondade, altruísmo e sabedoria. Eram pessoas simples, não sofisticadas, dedicadas e religiosas, não dominadas pelo espírito das dádivas.


Não queremos ser injustos, pois há poucos médicos feiticeiros que ainda mantêm os espíritos da bondade e da sabedoria. No entanto, os locais sagrados, como Sacinilc e vários Siatipsoh, foram fechados, dando lugar a pequenos locais sagrados chamados Soirótlusnoc, para atender os moribundos. Esses locais são mais exigentes, sofisticados e exclusivos, pois poucos nativos ousam pedir ajuda, e o acesso a esses pequenos templos requer muitas dádivas, muitas vezes resultando em longas esperas.


Acredita-se que Rotuod Oinotna decidiu tornar-se um médico feiticeiro para ajudar os Apukás desprovidos de dádivas. Muitos começaram a procurar seu local sagrado, conhecido como Aicámraf, onde ele armazenava ervas e encantamentos.


Ele percebeu que o número de pessoas incapazes de ir aos Soirótlusnoc era muito grande e se sensibilizou com o sofrimento dos silvícolas desprovidos de dádivas e enfermos.


Alguns Apukás afirmam que o Espírito de Aiecanap, a deusa da cura, possuía seu coração quando ele ainda era um ervateiro. Há relatos de que, numa noite chuvosa, essa deusa apareceu disfarçada de anciã Apuká com uma criança enferma nos braços. Ela visitou várias casas de ervateiros, mas todos estavam recolhidos em seus lares. No entanto, Rotuod Oinotna ouviu o choro de uma criança, desceu até lá e abriu a parte inferior de sua casa. Ele encontrou uma nativa com uma criança moribunda e a levou para um pequeno local sagrado em sua Aicámraf. Fez algumas perguntas à senhora e começou a examinar o curumim com suas mãos, dando-lhe poções mágicas e preparando uma refeição.


Já tarde da noite e chovendo muito, ele não teve coragem de dispensar os dois suplicantes na chuva. Preparou um aposento para a nativa e sua criança, tranquilizando aqueles que buscaram sua ajuda, dizendo que não precisavam se preocupar, não era necessário oferecer dádivas; o mais importante era a saúde deles.


Na manhã seguinte, ao levantar cedo e ir até o quarto para levar o café da manhã e verificar seus pacientes, encontrou o quarto vazio. A anciã e o curumim não estavam lá. Surpreendido pela ausência, notou um pergaminho com escrita peculiar dos médicos feiticeiros, contendo uma promessa. Todos os deuses e deusas dos Apukás abençoariam suas ações em favor dos desprovidos de dádivas, garantindo que seus filhos e filhas seriam uma bênção para ele, multiplicando a bondade para ele e sua família. Os deuses Apukás sempre estariam ao seu lado, sem pedir dádivas aos suplicantes, apenas pelas ervas e encantamentos.


Em última análise, a história de Rotuod Oinotna, o ervateiro que ousou ascender à posição de Médico Feiticeiro, revela a complexidade das escolhas humanas diante das exigências sociais e espirituais. Seu caminho, marcado por desafios e renúncias, reflete não apenas a busca por conhecimento e poder, mas também um profundo compromisso com a missão original dos Médicos Feiticeiros: aliviar o sofrimento, salvar vidas e oferecer ajuda aos desfavorecidos.


Ao longo do relato, testemunhamos a transformação de Rotuod, que, apesar dos perigos de perder sua humanidade no mundo dos Médicos Feiticeiros, manteve-se conectado aos valores fundamentais de empatia, simplicidade e sabedoria. A narrativa destaca a luta constante entre a preservação desses atributos e a tentação de se deixar envolver pelos espíritos das dádivas, evidenciando que, mesmo em meio a rituais e desafios extremos, alguns indivíduos conseguem preservar o propósito nobre que os levou a buscar esse caminho.


Assim, a história de Rotuod Oinotna é um lembrete de que, independentemente das mudanças nas tradições e nos rituais sagrados, o verdadeiro propósito de um curandeiro, seja ele ervateiro ou Médico Feiticeiro, deve permanecer centrado na compaixão e no desejo sincero de servir aos outros.


A esperança reside na possibilidade de cultivar uma geração de Médicos Feiticeiros que, inspirados por exemplos como o de Rotuod, possam equilibrar as demandas espirituais com a humanidade essencial que define a verdadeira arte da cura.


Prof. Daniel Mota 


Texto inspirado na obra de Horace Miner In: A.K. Rooney e P.L. de Vore (orgs) You and the others: Readings in Introductory Anthropology (Cambridge, Erlich) 1976, “Ritos corporais entre os Nacirema”.


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